Quando li o livro de Mary Sheedy Kurcinka, Rainsing your Spirited Baby (Criando seu bebê espirituoso, em tradução livre) eu senti arrepios da cabeça aos pés já nas primeiras páginas. Eu já tinha lido muito sobre as características de bebês high need, principalmente de acordo com as características que o médico dr. William Sears descreveu em seu livro The Baby Book, visto muito vídeos de mães com bebês de alta necessidade e me convencido de que a Lili tinha esse tipo de temperamento.
Mas lá pelos 7 meses, quando as coisas já não estavam tão terríveis como nos primeiros 4 meses, eu comecei a duvidar do nosso diagnóstico inicial. Para todas as pessoas que mencionávamos sobre a desconfiança da Lili ser um bebê de alta demanda havia imediatamente uma negação: “Não, não é possível, Bebês de alta demanda não são alegres e felizes como a Lili”. Com a melhora da Lili, a desconfiança das pessoas e o esquecimento das dificuldades iniciais, a dúvida inevitavelmente surgiu.
Ler esse livro foi a pá de cal. Ao ler as primeiras páginas comecei a ser invadida por uma sensação de alívio, de leveza e de um “eu sabia”, algo bastante importante quando você tem uma intuição, mas todos te dizem o contrário. Além disso, além de trazer essa certeza, o livro mostrou os lados positivos de ser responsável por um bebê de alta demanda, as possibilidades, os aprendizados, as delícias que esse serzinho de temperamento forte nos traz. E a aceitação da situação, o peso que eu tirei das costas e a confirmação do que sempre tínhamos suspeitado foi simplesmente libertador.
Eu gostaria de trazer um pouco do conhecimento que essa autora traz em seu livro, o que pode ajudar muitas mamães e papais perdidos, assim como eu já estive, principalmente se você for mãe ou pai de primeira viagem.
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ToggleO que é um bebê espirituoso?
Se no encontro com suas amigas mamães você é aquela que está em outro quarto, fora da casa, ou em pé segurando seu bebê ao longe, na esperança de evitar que ele se torne um leão furioso, enquanto todos os outros bebês brincam tranquilamente no chão, provavelmente você tem um bebê espirituoso.
Não é exatamente assim que a autora descreve, mas esse é também um bom exemplo.
A autora começa seu livro: “…se este é o seu primeiro filho possivelmente você está questionando suas habilidades como mãe e possivelmente chorando todo santo dia. Mas estou aqui para dizer: você não está falhando em absolutamente nada. Suas ações não fazem do seu bebê um bebê espirituoso”. Isso foi libertador.
A autora estima que ao redor do mundo até 20 a 25% dos bebês são espirituosos: “bebês espirituosos chegam a este mundo geneticamente destinados a serem altamente alertas e intensos. Não é a sua imaginação que seu bebê grita mais e mais alto, que você está trabalhando mais arduamente. Criar um bebê espirituoso realmente demanda mais tempo, habilidade e perseverança (e eu diria mais conhecimento), mas ninguém fala sobre isso”.
Não, ninguém fala sobre isso. E ainda, ninguém quer escutar sobre isso.
Os dois primeiros pediatras que passamos não paravam para ouvir nossas preocupações. Apesar de quase uma hora de consulta, apesar de nossas dúvidas sobre o comportamento dela, sobre os choros, berros, dificuldades em dormir, etc., para eles tudo era normal, coisa de recém-nascido. Foi tudo muito frustrante até decidirmos pesquisar por nossa conta, agir por nossa conta e não contar mais com a opinião dos médicos.
Isso nos ajudou a navegar os primeiros quatros meses mais desafiadores da vida da Lili. Isso e o reddit (rsrsrs).
Mas por que o bebê é espirituoso?
Imagem de Gerd Altmann por Pixabay
Segundo a autora o bebê espirituoso é geneticamente predisposto com um sistema de excitação (tradução livre de arousal system) mais reativo do que o habitual. Sistema de excitação é “fiação” do corpo que regula nosso sistema de “lutar, fugir ou congelar”, os níveis de energia, os ciclos de sono, a digestão, a frequência cardíaca, a respiração e a atenção. Ele é um centro de comando que fica o tempo todo analisando o ambiente e absorvendo tudo que acontece ao nosso redor. Quando esse sistema percebe algo novo ou diferente que não está acostumado envia um sinal para os sistemas biológicos do corpo se prepararem para o perigo;
Quando um possível perigo é detectado, o resultado é um batimento cardíaco e respiração acelerados, aumento de fluxo sanguíneo para os músculos e foco no objeto de perigo. Se o perigo é descartado, o corpo volta ao seu estado de calmaria. Essa habilidade de acelerar ou desacelerar nossas reações biológicas é chamada de auto regulação.
O sistema de excitação de bebês espirituosos é acionado mais rapidamente e se acalmam de forma mais lenta. A todo momento um bebê espirituoso, comparado com um bebê “fácil”, está em um estado de reatividade e consciência aumentada. E é por isso que esses bebês precisam de mais tudo. Mais atenção, mais colo, mais toque, mais ajuda para se acalmarem de que seus pares mais tranquilos.
Então a autora dá algumas características que mostram que o seu bebê pode ter o sistema de excitação reativo:
- Seu bebê chora aos prantos enquanto outro bebê na mesma situação dorme tranquilamente
- As estratégias que seus amigos juram que funcionam (e livros também) não fazem nem cócegas no seu bebê
- É quase impossível deitar seu bebê sem que ele acorde de olhos arregalados assim que toca qualquer superfície plana
- Aos 10 meses seu bebê está esvaziando a lava louças, procurando seu próprio lanche no armário e já se recusando ter não como resposta (eles atingem os marcos de desenvolvimento muito mais cedo que seus pares)
- As reações, choros e gritos parecem vir do nada e levam uma eternidade para passar
E como lidar com bebês espirituosos?
Essa parte é uma das mais interessantes do livro, porque valida tudo o que estávamos fazendo com a Lili até aquele momento. Não por escolha, mas porque foi a única forma que encontramos para fazer com que nossos dias não fossem um caos total. Aprendemos isso na tentativa e erro e sinto até hoje não ter encontrado esse livro antes. Teria me poupado muito sofrimento, dúvidas e momentos de desespero.
A autora explica que as práticas tradicionais recomendadas pela maioria das pessoas, de deixar o bebê chorar ou não responder às suas demandas rapidamente, no sentido de não mimar e não ser manipulado ou criar maus, hábitos, não funcionam. Devido a seu sistema de excitação mais reativo, um bebê de alta demanda precisa do oposto, que suas demandas sejam atendidas, se possível rapidamente. Essa resposta mais rápida e amorosa fará com que a “fiação” de seu cérebro seja modificada, melhorada, e novas conexões neurais sejam feitas. O bebê se torna mais confiante de que será cuidado quando surgir uma demanda e, então, seu sistema de excitação começa a relaxar um pouco.
Outra passagem interessante é a que menciona que a maioria dos livros disponíveis para ensinar os bebês a dormir falam que a técnica não funciona para todos os bebês. Bem, essa porcentagem para os quais a técnica não funciona são os bebês high need/espirituosos/de alta demanda. E nenhuma alternativa ou maiores esclarecimentos é dada para esses tipos de bebês. Se fosse, pouparia muito dinheiro, tempo e frustração de pais tentando avidamente qualquer alternativa que possa funcionar com seus pequenos espirituosos.
Os princípios da autora para lidar com bebês espirituosos são:
- Estar consciente e sensível aos sinais do bebê, sempre tentando antecipar suas necessidades antes do ponto de não retorno, quando seu sistema de excitação se torna sobrecarregado
- Responder ao bebê imediatemente quando ele demandar
- Suporte e cuidado para a toda a família, incluindo o bebê e seus pais
- E, gradualmente, trazer o bebê para a rotina da família usando técnicas simples e sensíveis às necessidades do bebê, mas que ao mesmo tempo o ajudem a entrar no ritmo e rotina da família
A parte prática e minha experiência
A partir do segundo capítulo, Kurcinka começa a explicar seu método de ajudar os pais a lidar com bebês espirituosos, com dicas práticas para se usar no dia a dia.
Eu confesso que essa parte do livro foi a menos interessante para mim. Como eu li o livro quando a Lili já tinha passado pela fase mais difícil, muitas das técnicas que ela descreve já tinha sido entendida e utilizada e estabelecida como regras em nossas vidas. À duras penas.
O processo para mim foi bastante doloroso, pois tudo o que eu esperava de um bebê, o que eu tinha lido e tentado implementar caía por terra, um a um. Nada funcionava com a nossa bebê. E graças ao Xuxu, que conseguiu ler claramente o que a Lili precisava e atender a suas demandas (ele é uma pessoa bem mais sensível, intuitiva e aberta ao desconhecido do que eu), fomos criando um conjunto de regras que facilitou demais a nossa vida.
Foi um período de ensinamento, de que não podemos controlar tudo e que nem sempre as coisas são do jeito que queremos. Mas que elas podem ser boas ainda assim se tivermos paciência, aceitação e perseverança.
No cuidado com a Lili, estabelecemos que:
1. Não havia forma de deixá-la chorar para poder ensinar algo.
Caso não atendêssemos ao choro imediatamente a escala ia subindo até chegar ao ponto de não retorno que a autora menciona. E não era algo que demorava 5 minutos e ia gradualmente. Em alguns segundos o choro que havia surgido apenas como uma reclamação baixa ia à 100 sem mais avisos. Conosco o ponto de não retorno aconteceu algumas vezes e foi assustador.
Conforme ela foi crescendo, fomos tentando 5 minutinhos para ela se acalmar, o que funcionava em algumas vezes, mas não em todas.
2. Teríamos que carregá-la conosco aonde fôssemos.
Excetuando o período de sono noturno, que ela aceitava ficar no moisés/berço, não havia alternativa durante o dia que não fosse o meu colo ou o do Xu. Carrinho, berço, chão, sofá, poltrona, colo de mãe, tia, tio, babá, nada. Às vezes o colo do meu pai era aceito por alguns minutos, mas somente isso.
3. Nossa vida social tinha acabado por alguns meses.
Tirando visita ao médico, que era um sofrimento em si, não saíamos para nada e não aceitávamos visitas de mais de duas pessoas. A Lili era tão sensível a estímulos, que falar, olhar e tocar nela ao mesmo tempo causava uma boa quantidade de choro posterior. A exceção foi a visita dos pais e a irmã do Xu, que vieram em 3 pessoas. Mas com o passar dos dias fomos percebendo que as visitas podiam ser somente durante algumas horas e longe do horário de dormir. E quando eles estavam aqui, um de nós tinha que ficar quase o tempo todo com ela em algum quarto separado, em luz baixa, com ela dormindo ou para acalmá-la.
4. Nada de brinquedos.
Todos os brinquedos que compramos no começo, e não foram muitos, precisaram ser escondidos. Qualquer coisa mais colorida, que se mexia demais ou fazia algum barulho a deixava chorando por meia hora depois do contato.
5. Íamos seguir uma rotina quando possível (ou sempre).
A Lili aceitou bem a rotina noturna, para dormir, e a das mamadas. E não ousamos quebrá-las. Por 9 meses nunca perdemos o horário dela dormir ou de mamar e isso significa que a nossa vida flui de acordo com suas necessidades. Sair à noite, dormir fora, jantar a dois carregando o bebê? Esquece. Depois que fizemos a consultoria do sono os horários de soneca também ficaram certinhos e até hoje marcamos qualquer compromisso, visita, passeio em torno do relógio dela. Posso dizer que estabelecer uma rotina ajudou muito;
6. As sonecas iam mesmo ser somente no colo
Tentamos, tentamos e tentamos fazer com que ela dormisse em algum outro lugar que não em nós, mas toda tentativa era um estresse muito grande. E mesmo dormir no colo foi uma batalha em zilhares de ocasiões, às vezes com choro no colo por mais de 40 minutos em algumas delas.
7. Nada de cuidadores.
Tentamos uma babá quando a Lili tinha 4 meses. Foi ho-rrí-vel. Ela não aceitou a babá, ficava no máximo 10 minutos interagindo com ela e depois queria um de nós. Para dormir foi ainda pior. A Lili gritava, gritava, gritava, pedindo para que a pegássemos e não chegava nem perto de relaxar para dormir. Isso no colo. Então, desistimos de cuidadores e ajustamos nossa rotina para ficar com ela
8. Chorar faz parte
Sim, essa foi a mais difícil para mim e a mais libertadora. Aceite que seu bebê sensível/espirituoso/high need vai chorar mais do que a média. Às vezes o dia todo. E não há nada que você faça que vá mudar essa realidade.
9. Amamentar seria uma luta, na maioria das vezes
Minha história com a amamentação foi difícil, como acontece com muitas mulheres. Comigo, além dos fatores normais de dor, rachadura, inflamação, e todo o resto que vem no começo dessa jornada veio uma bebê espirituosa. No começo foi o refluxo, algo que também pode acontecer com bebês de todos os temperamentos. Mas quando a Lili começou a ganhar um pouco de consciência de mundo, lá pelos 3 meses, a coisa mudou. Amamentar era possível somente em um quarto escuro, sem barulho ou pessoas por perto e após alguma soneca. Em algumas épocas eu tinha que olhar para ela o tempo todo, senão ela largava o peito. Pessoas andando no corredor ou entrando no quarto onde eu estava amamentando, até hoje não é possível. Qualquer barulho a distrai. Enquanto ela não podia comer sólidos, amamentar foi sempre uma batalha e preocupação. Depois que ela começou a comer, eu simplesmente abstraí.
Muitas dessas práticas que listamos aqui está no livro da Kurcinka. E aprendemos na tentativa e erro, mas você não precisa disso. Apesar de não ter versão ainda em português, eu aconselho demais o livro para quem puder ler.
E mais uma coisa, o livro tem um teste com 5 perguntas que ajuda os pais a confirmarem que seus bebês são espirituosos. Eu lembro que quando fiz o teste, de uma escala de 17 a 25 para bebês espirituosos a Lili ficou com 22.
Mas você não precisa de teste para saber. O seu dia a dia, e sua intuição, te dirão de forma clara e gritante. Ainda assim, é gostoso ter a confirmação quando todos ao eu redor pensam que você é só uma mãe de primeira viagem, inexperiente e que já colocou 521 maus hábitos no seu bebê de 3 dias, que precisam ser retirados com persistência e muito choro. Não, não mesmo.
Abraços